sexta-feira, 19 de julho de 2013

Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto




A inversão do olhar em Isaías Caminha

1 - Introdução

      A crítica tem sido unânime em considerar Recordações do escrivão Isaías Caminha um romance destituído de equilíbrio, opinião corroborada pelo próprio Lima Barreto em carta a Gonzaga Duque:

          um  livro desigual, propositalmente  mal  feito, brutal, por  vezes, mas
          sincero  sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar (...)
          hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples
          fatos não dizem, segundo o nosso Taine (apud Barbosa, 1981, p. 162).

     No entanto, a compreensão desse desequilíbrio deliberado ocorre de modo diverso no autor e na crítica. Aquele, segundo os seus próprios termos, vê a literatura como a possibilidade de desalienação na formação da consciência, tomando-a claramente não apenas como complemento ao real, ornamento, constatação de sua lacunosa percepção, mas espaço de discussão dos principais problemas do tempo e de construção da linguagem capaz de expressá-los. Já a preocupação desta é de outra ordem, exclusivamente atenta à organicidade da obra literária, posição expressa com clareza na objeção fundamental levantada por José Veríssimo:

          Há  nele, porém, um defeito grave, julgo-o  ao  menos, para  o  qual
          chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo, pessoalíssimo, e,
          o que é pior, sente demais que o é (apud Barbosa, 1981, p. 179).

      Paradoxalmente, são essas duas apreensões – o desequilíbrio e o personalismo – que nos levam a tentar decifrar o universo limabarretiano.
    O duplo diagnóstico do mal que enfraquece o livro reduz-se, na verdade, a apenas um: o personalismo, causa dos desequilíbrios ao longo da obra do autor. A sua tradução literária dá-se sob um olhar que conforma os objetos à natureza de seus desejos, imprimindo ao mundo uma força centrípeta, pois os acontecimentos são puxados por uma vontade que move o olhar sobre o real e conduz o sujeito à impotência ao não conseguir a plena realização da dupla perspectiva romântica: a certeza de predestinação, de julgar-se superiormente dotado, e a cobrança de uma estrutura social perfeita.
   O percurso do protagonista situa-se no centro da retina, constituindo-se o olhar em metáfora da apreensão do real. Sua irrupção no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha surge impregnada com uma luz intensa voltada para a topologia social onde se fraciona e fratura a humanidade. Em Lima Barreto, como veremos mais adiante, esse balé classificatório, essa inserção na hierarquia social, apresenta uma complexidade que salta aos olhos, principalmente por colocar em discussão o espaço dos sem-lugar, dos excluídos, da margem. Sua obra padecerá dessa antinomia: é literatura de fora, porque incorpora pequena parte do universo dos sem-lugar, situando-o na proximidade de crônica social, ensaio e jornalismo: e é uma literatura de dentro, por existir no interior de relações linguísticas trabalhadas com fins estéticos; pouco importam os aspectos factuais, históricos e sociais ao processo narrativo, se não estiverem submetidos ao processo ficcional.
    O percurso de Isaías Caminha é, inicialmente, determinado por um olhar para cima, voltado para um plano superior que remete à concepção extremamente idealizada da existência, ingênua o suficiente para acreditar no mérito individual como moeda de trânsito rumo à ascensão social. Tal olhar corresponde a um estado pleno, repleto de humanidade, natural (na acepção rousseauniana), sem a perversão operada pelos mecanismos de cooptação ou rejeição social. Um céu ao alcance do talento é o fio condutor do jovem interiorano esperançoso ao ventre feroz da metrópole. Deslocar-se, assim,  só se justifica, obviamente, pela crença absoluta na qualidade do movimento que se dá por excesso, por transbordamento das capacidades individuais, cujo afloramento e a consequente consciência provocaram a sua expulsão do meio provinciano, onde se tornara um sem-lugar. 
    A mudança de locus converte olhar para cima em olhar para baixo. Esmagado ao peso da perversa engenharia social urbana, Isaías nega, gradativamente, a qualidade de sua apreensão crítica ao ganhar um lugar na redação do jornal onde ocupará as modestas funções de contínuo. O sujeito perde a consciência de si, transforma-se em objeto, muda o foco de sua visão: se contempla a realidade, é sob o prisma do menos, da subtração, da falta, espaço próprio ao recalque e ao rancor. O ponto máximo de sua dominação consiste em ver o mundo pelos olhos de. Degradado ao máximo, perde a consciência, desconstrói o universo de referências, pensamentos e ideais, assumindo a leitura feita pela ordem dominante como algo natural.
    Claro está que tal classificação visa tão-somente a entender o percurso de Isaías Caminha, pois o olhar é obrigado a conformar-se ao real, ao incessante movimento, ao devir, assumindo toda a sua complexidade.
    O protagonista é capaz de manter certa margem de independência, mesmo sob dominação, por isso esse olhar para baixo está eivado de contradições. Quando o diretor do jornal, Ricardo Loberant (trata-se, na realidade, de Edmundo Bittencourt, dono do jornal “Correio da Manhã”, modelo de “O Globo” no romance), finalmente passa a enxergá-lo, Isaías Caminha denota uma arguta recepção, atento à sua anterior inexistência, à sua não visibilidade. Constata, com tristeza, que a classe dominante é incapaz de enxergar a humanidade, a sensibilidade e a inteligência dos oprimidos. Aliás, é o olhar dominante que perverte o universo dos indivíduos em massa, soldando múltiplas existências no todo uniforme e anódino que envolve termos como "povo", "multidão", "população" e correlatos. A classe dominante lê o mundo como a sua casa, o olhar dela é, portanto, domesticador, tendendo a transformar todos numa abstração amorfa, numa inarticulação humana. Isaías Caminha não é ninguém. Ninguém o vê. Sua humanidade não existe, pois dependendo da visão e esta, por sua vez, necessitando de uma posição social, não pode ser visto.
    Incorporado à redação do jornal como um "igual", Isaías Caminha passa a viver, na parte final da narrativa, sob o influxo do "intimismo à sombra do poder", categoria lukacsiana retomada por Carlos Nelson Coutinho (1974, p. 4). Tal conceituação revela o mecanismo de cooptação dos intelectuais, uma das mais fortes denúncias contidas no romance. O processo de dominação das inteligências consiste em colocá-las a serviço do olhar dominante ou, na pior das hipóteses, neutralizá-las com cargos ou favores. Isso é possível pela presença, ainda seguindo as formulações arquitetadas no ensaio citado, da "via prussiana" no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, caminho caracterizado pela conciliação com o atraso, evidentemente representado pela especificidade da formação econômica brasileira: sistema de exploração colonial, sustentado por um modo de produção escravista, forma particular do capitalismo como um sistema universal.
    Entre as particularidades da nossa formação destaca-se a figura do agregado. Sua importância reside no lugar que ocupa na estrutura social, uma posição intermediária entre o elemento servil e o trabalhador assalariado. Sua existência assinala a presença de uma categoria sem uma função precisa no interior da organização produtiva. A falta de precisão implica no engendramento de uma relação de dependência paternalista, capaz de dar corpo e vida a um contingente de seres divididos em tarefas correlatas: moleques de recados, capangas, comensais, domésticos, etc., todos, no fundo, seres deslocados, intrusos, destituídos de um espaço próprio, misto de animal doméstico, trabalhador de mil e uma utilidades e parente remoto.
    Quando é apontada a importância concedida na obra limabarretiana à figura excêntrica, torna-se necessário examinar a excentricidade não apenas na sua significação intrinsecamente literária, mas investigar que tipo de relações sociais expressa. A excentricidade, mais do que um traço de herói problemático, parece recobrir um universo coletivo. À falta de formas consistentes e eficazes de reversão da situação em que se encontram, os excluídos tendem a assinalar uma resistência desordenada e caótica através da construção de uma diferença que se faz no vazio, visando a quebrar o ordenamento burguês do mundo no terreno da individualidade.
    Tanto o excêntrico quanto o agregado constituem-se (isso quando não se fundem) em elementos marginais, cuja lateralidade expõe tensões entre mundos distintos. Isaías Caminha, tão deslocado quanto Policarpo Quaresma, é o romance do fracasso exemplar da meritocracia, a narrativa do apagamento de qualquer mudança de rumo. O mito da ascensão social por meio da arte desmonta-se com a transformação do êxito em conformismo e abdicação do vigor do caminho original.


2 – A inversão do olhar


    Recordações do escrivão Isaías Caminha pode ser dividido, sem risco de queda em esquematismos, em duas partes: na primeira, o autor traça o percurso de um jovem oriundo do interior, disposto a tentar a sorte na metrópole, e o desenho esboçado é dotado de grande acuidade, mostrando o seu progressivo entrelaçamento na atmosfera social e urbana; na segunda parte, há um mergulho no microcosmo de uma redação de jornal, vista como um espelho onde estão projetadas as imagens dos problemas característicos da estrutura social brasileira. É justamente na passagem da primeira para a segunda parte que o autor perde o fio da meada. Não propriamente pelo tom panfletário atribuído à última parte, mas pela mudança operada no foco narrativo:

          Tão  logo  Isaías  ingressa  no  jornal, o romancista  altera inteiramente
          o seu  foco narrativo, praticamente  abandonando o personagem e
          concentrando-se  na apresentação dos bastidores do jornal
          (Coutinho, 1974, p. 29).

     O fato de ter sido lido por parte da crítica como um mero roman à clef muito contribuiu para um certo descaso, como se a única preocupação do autor fosse escandalizar a sociedade.
     O jornalismo, aliás, não serviu somente de tema a uma de suas obras:
     
          Nos romances de Lima  Barreto, há, sem  dúvida, muito de crônica:
          ambientes, cenas quotidianas, tipos  de  café, de  jornal, da vida
          burocrática, às  vezes só mencionados ou esboçados, naquela  linguagem
          fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero (Bosi, 1969, p. 95).

    Seguindo a estrutura narrativa da obra, abordaremos as duas partes separadamente.


  
2.1 – Um olhar sobre a cidade


    O primeiro capítulo do romance apresenta uma visão sobre o saber totalmente idealista, chegando a confundir-se com essência divina: “– Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados...” (p. 35).
    Essa visão supervalorizadora do conhecimento aparece como a possibilidade, de outro lado, de redenção do protagonista, estigmatizado pela pobreza e por ser mulato: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor” (p. 41).
    O conhecimento é concebido sob a forma do estereótipo vigente à época: a figura do doutor, do bacharel, símbolo maior de uma cultura eminentemente ornamental e decorativa, representada através de detalhes meramente protocolares: diplomas, anéis, sobrecasacas e cartolas. Inicia-se, portanto, a narrativa sob a égide da paródia, voltada diretamente contra um dos desmazelos brasileiros, o predomínio da verbosidade, do aparato verbal, do monumentalismo enciclopédico sempre como uma das formas pomposas de exibição do poder. Guarda a introdução da narrativa elementos que já apontam para a determinação dos próximos passos.
    A decepção advinda do abismo entre o sonho e a realidade começa logo na viagem, por ocasião de uma parada. Isaías Caminha toma contacto com a discriminação racial, apesar de ainda ser incapaz de perceber a origem do tratamento desigual. Sofre duplamente: pela discriminação e pela angústia em tentar desvendar a origem e o significado desse ato. Nessa passagem fica patente o contraste entre o temperamento hipersensível do protagonista, suas ambições e a mesquinhez do mundo. De um lado, um “rapazola alourado”, prontamente atendido; de outro, um mulato, desprezado, apesar de todos os seus predicados: “eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traço de sagacidade que herdei de meu pai” (p. 45).
     Se o seu olhar guarda doçura e sagacidade, seu primeiro companheiro no novo ambiente – o penumbroso Laje da Silva (Paschoal Segreto, empresário famoso no começo do século XX) – encontra resistências, pois: “o seu olhar cauteloso, perscrutador e sagaz, junto ao seu ar bonacheirão e simplório, provocavam-me desencontrados sentimentos de confiança e desconfiança” (p. 48).
    Ainda é pelo olhar que o narrador apresenta a figura de Raul Gusmão: “Falava e não nos olhava quase; errava os olhos – os olhos pequeninos dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça qualquer de suíno” (p. 50).
    Os olhos, aliás, são o “traço físico, por assim dizer obsedante” (Proença, 1976, 64) em Lima Barreto. Através deles o narrador expressa toda a gama de sentimentos, alinhando-se à tradicional interpretação que os considera como espelhos, fiéis reprodutores da alma, entendimento que se coaduna perfeitamente com a preocupação do autor sobre a sinceridade, colocada num lugar de honra entre as virtudes.
     Ainda sobre a figura de Raul Gusmão (nome cifrado de João do Rio) note-se o uso de um dos recursos expressivos de Lima Barreto na composição de personagens construídos de modo grotesco: a deformação mediante a animalização dos seres, processo nitidamente expressionista. Assim, o jornalista é visto como “uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado” (p. 12).
     Não é apenas sobre as criaturas que o narrador volta-se demolidoramente. As instituições revelam-se também como destituídas de profundidade e interesse pelos problemas nacionais. A desconstrução do universo político faz-se desde a demonstração da irracionalidade de um tipo popular cooptado pelos poderosos – o Chico Nove-Dedos, capanga do Senador Carvalho -, a exemplos dos numerosos capoeiras envolvidos num sistema que os protegia e perseguia, simultaneamente, até a exposição de uma galeria de políticos oportunistas e vazios. As palavras com as quais descreve uma sessão na Câmara dos Deputados são magistrais:

          Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia
          a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados
          da sua eloquência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá  ao longe,
          quase na  minha frente, alguns viam cartões postais; um outro, sob  os
          meus pés, isolado,  no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo,
          de quando em quando, a  caneta para pensar; uma roda de três,
          à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo: ao fundo, ainda, mas um
          pouco  à  direita, um  deputado  gordo, com o calor que  com o
          correr do  dia  se  fizera  forte, roncava  perceptivelmente. Fagot
          falou cerca  de meia  hora; e, quando deixou  a  tribuna, o     
          presidente já era  um terceiro deputado, um velho com
          pince-nez de aros de ouro (p. 13).

      O efeito obtido é o de contraste, pois antes do discurso do deputado Fagot o narrador descrevera, em termos ironicamente ultraidealistas, o universo dos representantes do povo, criaturas divinas, dotadas de um saber fantástico, dedicados ao seu ofício, versados em Quiromancia, Matemática, Grafologia, Química, Teologia, Alquimia.
     Após o discurso de Fagot  (Pandiá Calógeras) soa como de um cômico grotesco a entrada de Isaías nas dependências da Câmara com a cabeça cheia de nomes de reis assírios, de faraós, de filósofos gregos, de generais romanos, de romancistas e grandes personalidades de nossa história.
     À imprensa e à Câmara dos Deputados, junta-se outra instituição: o exército, diante do qual Lima Barreto sempre adotou uma postura crítica em função da crescente influência que esta instituição veio a desfrutar na República. Ela formulou e impôs uma concepção de Positivismo que possuía um caráter seletivo, elitista, contra a qual Lima Barreto veio a se chocarr, apesar de seu namoro com a corrente de Auguste Comte. O bonapartismo positivista republicano afasta profundamente o exército do autor de Policarpo Quaresma, alimentando ainda mais o seu antimilitarismo. A passagem de um desfile militar serve para a formulação de discurso revelador da existência de dois Brasis:
    
           Os   oficiais  muito  cheios  de  si, arrogantes, apurando a sua elegância
           militar; e as praças bambas, moles  e trôpegas  arrastando o passo
           sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as
           carabinas  mortíferas  com  as  baionetas  caladas, sobre os ombros,
           como  um  instrumento  de  castigo. Os  oficiais  pareceram-me  de
           um  país  e  as praças de outro (p. 14).

      Os oficiais, destarte, constituiriam uma casta privilegiada, imune aos clamores populares. Alheamento semelhante ao revelado pelo deputado Castro, indiferente às solicitações de Isaías, apesar da carta de recomendação trazida e assinada por um coronel ligado ao político.
     O narrador inicia o quarto capítulo dirigindo-se diretamente aos leitores, como se quisesse colocá-los no interior dos meandros intestinos dos bastidores políticos com suas manobras,  tráfico de poder e jogo de influências.
     Frustrado em suas pretensões perante o deputado Castro, Isaías passa pela maior humilhação ao ser preso sob a acusação de furto, em que se mesclam preconceito de classe e discriminação racial, devido à sua condição de mulato pobre. A cena de seu interrogatório serve para revelar o comportamento do aparelho policial diante da questão racial e, também, da questão social, pois o narrador acrescenta à ação do protagonista duas outras, de natureza diversa: uma mostra um caso policial envolvendo duas pessoas do povo; a outra expõe a subordinação da polícia à classe dominante, num jogo de encobertamento e cumplicidade entre ela, o senador Carvalho e o marginal Nove-dedos.
     Em sua crítica à sociedade, Isaías volta-se ainda contra a concepção literária vigente, deixando claro que o importante é a literatura funcionar como meio de expressão das ideias relevantes ao progresso social. Daí sua ojeriza aos literatos:

          São em  geral de uma  lastimável  limitação  de ideias, cheios  de
          fórmulas, de  receitas, só capazes  de colher fatos detalhados e
          impotentes  para generalizar, curvados aos fortes e às ideias
          vencedoras, e  antigas, adstritos  a  um  infantil  fetichismo  do  estilo
          e  guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério
          de beleza (p. 15).

      Em Isaías Caminha é frequente a voz do narrador ser abafada pela voz do autor, pois é o próprio Lima Barreto que exprime suas ideias a respeito de literatura, confessando leituras, fontes e influências, buscando em outros horizontes um instrumental adequado à expressão da realidade brasileira, encoberta pela estética infantil do malabarismo verbal e da pirueta estilística. É o autor quem afirma: “Entretanto, quantas dores, quantas angústias! Vivo aqui só, isto é, sem relações intelectuais de qualquer ordem” (p. 16).
     Nessas palavras Lima Barreto revela a consciência do seu insulamento, de sua especificidade avessa à norma reinante.
     Isaías Caminha sem emprego, longe de sua família e da cidade natal, encontra-se só.
     O encontro com Abelardo Leiva (Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro de meu tempo) e com Agostinho Marques (na verdade, o advogado Pedro Ferreira do Serrado) parece encaminhar a ação romanesca a um desdobramento progressivo, ao introduzir uma discussão de natureza social mais ampla, confrontando formulações positivistas com ideias anarquistas e socialistas. No entanto, opta por um estudo de caso, anunciado na acerba crítica de Leiva à imprensa.

          É um  poder vago, sutil, impessoal, que  só poucas inteligências
          podem colher-lhe a força e a essencial  ausência  da  mais  elementar
          moralidade, dos  mais  rudimentares sentimentos de justiça  e honestidade!
          São grandes  empresas, propriedades  de venturosos  donos, destinadas
          a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja
          inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os
          caracteres para os  seus  desejos inferiores, para os seus atrozes
          lucros burgueses...  (p. 17).

  
2.2 – Um olhar sobre o microcosmo

      A segunda parte do romance processa-se, praticamente no interior do jornal O Globo, onde, graças à intervenção de Ivã Gregoróvitch Rostóloff (Mario Cattaruzza) , personagem que parece saída das páginas de Doistóievski, consegue empregar-se como contínuo. A redução do universo narrativo, sua concentração num ambiente menor, o abandono ao ritmo progressivo na constituição do protagonista, o voltar-se do foco narrativo para uma constelação de personagens formadora do universo do jornal representa a acentuação de traços expressionistas, deformadoras e caricaturais da narrativa.
     Principia por uma descrição dos componentes da redação. Ricardo Loberant, o diretor do jornal, é apresentado como homem “sem talento, sem pertinácia e paciência” para conseguir afirmar-se por mérito próprio, razão pela qual recorre à paixão para conseguir seus objetivos. O primado da vontade acentua os contornos de seu paternalismo, expressão das relações sociais caracterizadoras da “via prussiana” ou, seguindo outra vertente ideológica menos explorado, de um “estado patrimonial”, conforme a conceituação desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda. Se o diretor do jornal representa os interesses privados, particulares, o seu relacionamento com o poder público faz-se mediante a diluição completa da fronteira entre o público e o privado, transformando-se aquela numa estrutura apropriada pela classe hegemônica. No seio de tanta desonestidade e falta de nitidez pode-se entender a filosofia do jornal: “era só fechar os olhos e estender a mão” (p. 18).
     Chama a atenção na caracterização da personagem a total ausência de qualquer linha de pensamento. Trata-se de um “viveur” típico, enfronhado num jornal visto apenas como mercadoria, objeto capaz de produzir ricos dividendos.
     Aires d’Ávila, pseudônimo de Pacheco Rabelo (Pedro Leão Veloso Filho, que usava o pseudônimo de Gil Vidal), é o redator-chefe, o braço direito do diretor, descrito com traços caricaturais: “Havia na sua marcha um grande esforço de tração e um monóculo petulante na face imóvel não lhe diminuía o peso da figura” (p.19).
     Leporace (Vicente Piragibe) torna-se sumidade em literatura graças não a um profundo conhecimento do assunto, mas devido à sua natureza respeitosa e serviçal diante do diretor.
     Raul Gusmão, Gregoróvitch e Oliveira (Pedro da Costa Rego), este último tido como “parvo e besta”, são introduzidos na primeira parte da narrativa.
     Extremamente sugestiva é a caracterização de Floc (trata-se de João Itiberê da Cunha, o JIC):

          entrou o fino, o elegante, o diplomático, o macio Frederico
          Lourenço do Couto, com a sua linda barba perfumada e o seu grande
          queixo erguido e atirado para adiante como  um  aríete encouraçado.
          Vinha  todo  perfumado,  de  olhar  lustroso,  desprendendo   essências,
          com  o peitinho da camisa a brilhar  imaculadamente e um grande botão
          coral ao  centro, rodeado de brilhantes (p. 20).

     Com tantos predicados, Floc serve para o autor implícito expor ao ridículo determinado
tipo de crítica literária em voga nas décadas iniciais do século passado:

         A  sua  crítica  não obedecia a nenhum  sistema; não  seguia  escola
         alguma. As suas regras estéticas  eram  as suas relações com   o
         autor, as recomendações  recebidas, os  títulos universitários, o nascimento e
         a condição social. Elogiava nefelibatas, se eram de sua amizade,
         se eram ‘limpos’; detratava se não eram. Tinha, além, dois princípios:
         a aristocracia da arte e a  fulminação  dos  nulos. Entendia, a  seu  modo
         aristocracia  da  arte, isto é, arte feita  pelos aristocratas como ele,
         cujo pai tivera na primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa (p. 21).

     Também o sistema literário sofre as consequências do desenvolvimento através da “via prussiana”. Falta-lhe organicidade e continuidade. As obras apresentam-se desligadas dos problemas contemporâneos. A literatura torna-se um vazio, pasto de aventureiros, colunistas sociais e damas da sociedade, um amável e doce sorriso. O paternalismo preside as relações entre  a crítica e o artista, corrompendo o que há de melhor. O crítico é o olhar dominador, tradução cultural do poder, por isso elide o negro e o mulato do plano social; quando incorpora um autor que consegue furar a teia de silêncio (um Machado, por exemplo) o faz com uma preocupação (totalmente ausente nos demais casos) obsessiva no “literário”: isto é, incorpora o autor, não a sua cor. Nessa crítica não, além disso, nenhum fundamento teórico.
     Além dessas personagens, há uma galeria de tipos minúsculos: Lobo (o gramático Cândido Lago), o consultor gramatical; Losque (provavelmente Gastão Bousquet) e Lara (para alguns, Bastos Tigres; para outros, Antônio Sales), humoristas; Meneses, o único que estudava; Oliveira, admirador extasiado de Ricardo Loberant; Rolim (Francisco Souto), analfabeto, mas lindo como narciso; Costa(?); Barros(?), agente de anúncios; Adelermo Caxias (Viriato Correia), um intelectual amaciado pela pressão do poder. Lugar destacado ocupa Gregoróvitch:

          era da artilharia. Com o seu estilo desconjuntado e a sua violência
          injuriosa, abria brechas nas  linhas adversárias e dizimava-as de longe.
          Estrangeiro, nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem a
          sentindo pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque tinham uma violência
          desmedida (p. 22)

     Completa o quadro Alberto Pranzini (Giovani Fogliani), o gerente, figura lateral, ocupado exclusivamente com os lucros.
     Ao pequeno mundo do jornal acrescenta-se a figura singular de Veiga Filho,  “o grande romancista de luxuoso vocabulário”, paródia a Coelho Neto, a quem não perdoa a chinesice
literária.
     A crítica à literatura dominante: o leve e adocicado maneirismo social de Floc; o intenso verbalismo de Coelho Neto; e a literatura enquanto expressão do sorriso da sociedade, acrescenta-se a crítica à tendência predominante na linguagem da época, o exagerado apego
o um falso purismo gramatical, entrevisto nas palavras de Lobo, o fiscal da língua:

         - Brasileiro, doutor! falou  mansamente o gramático. Isto que se
         fala aqui não é língua, não é  nada: é um vazadouro de imundícies.
         Se Frei Luís de Souza ressuscitasse, não reconheceria a  sua  bela
         língua   nessa  amálgama,  nessa  mistura  diabólica  de  galicismos,
         africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, hiatos, colisões...
         Um inferno! Ah, doutor!  Não se esqueça disto: os romanos
         desapareceram, mas a sua língua é estudada (p. 23).

     Uma vez introduzido no microcosmo jornalístico, Isaías passa a conformar-se em consonância com o ambiente, assimilando as qualidades do meio onde exerce a sua atividade. Testemunha a manipulação da insatisfação popular através de uma campanha dirigida, no fundo, por mesquinhos interesses pessoais. Presencia a morte de Floc, um suicídio por impotência. A morte do crítico significa a sua ascensão no jornal. Ela o aproxima do diretor, pego em flagrante num ambiente pouco recomendável. Essa aproximação equivale ao apagamento completo de seu olhar, a sua absorção pela lógica do sistema diante do qual tivera, até então, uma consciência crítica, apesar das modestas funções subalternas. O olhar do diretor do jornal e o de Isaías não se cruzam, são imiscíveis; um acaba por deslocar o outro, apagando-o. Não é necessário dizer qual.


 3 – Conclusão 

     Preso à teia do poder, Isaías Caminha desfaz-se de seus projetos pessoais. No entanto, o processo de cooptação não é linear e prontamente resolvido. A noção de superioridade conserva-se, apesar de tudo, juntamente com um idealismo enfraquecido ao extremo.
     Enquanto jornalista assume o império da língua, exemplarmente vislumbrado por Barthes: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, s/d, p. 14).
     Torna-se, portanto, uma das vozes do poder: “...por toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância” (Barthes, s/d, p. 11).
     De sua autonomia, de sua posição fora do sistema de dominação, converte-se em membro ativo, pois o poder dissemina-se por toda parte: “...o poder ( a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder” (Barthes, s/d, p. 10).
    O discurso de Isaías Caminha é uma caligrafia em ruínas, o percurso da deserção e do amesquinhamento: discurso de perda e supressão da individualidade. No entanto, nos fragmentos de sua individualidade expõe as vísceras de seus sonhos, isto é, aponta para uma outra possibilidade de encenação, um novo deslocamento de signos  (menos policialescos e pernósticos), liberados de catedralescos compêndios  de raridades léxicas e de uma estilística da futilidade. Do interdito, do lado maldito, da zona de penumbra da cidade a ardência instala no centro do olhar a lateralidade perigosa e subversiva dos fora de cena. 

Rio de Janeiro, 1990.

  
Referências bibliográficas
  
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-  Universitária, 1981.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 6ª. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 4ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970.
_____. A nova Califórnia. São Paulo: Brasiliense, 1982.
_____. Os bruzundangas. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOSI, Alfredo. O pré-modernismo. 3ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1969.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e de história literária. 5ª. ed. rev. São Paulo: Nacional, 1976.
COUTINHO et alii. Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Grifo, 1976.
REZENDE, Beatriz et alii. Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1988.
____. “Lima Barreto e a República”. In: Revista USP, nº 3, set/out/nov, 1989.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.


Nenhum comentário:

Postar um comentário