terça-feira, 13 de setembro de 2011

Joaquim Palhares, 308, sobrado, Estácio




          Um samba-narrativo de José Antônio Cavalcanti


A casa estava abandonada como uma cidade fantasma. Janelas abertas e olhos insones desmontavam arcanos e reminiscências. Pés e mãos perfurados por cigarros acesos e pregos enferrujados sustentavam um corpo crucificado na sala de jantar, antes do almoço. A casa estava vazia e supensa no ar, depois do despejo, do choro, da revolta de seus moradores e do peso de sua velha mobília terem descido degraus perplexos e inseguros. Pano de prato não serve para suicídio e a vida no presídio não vale o pavor na face lívida do oficial de justiça. Então, desocupar, fugir, recolher as cicatrizes e as rachaduras dessas paredes úmidas. Última flor do Estácio. Poiésis e veneno. Laço no pescoço. Dívidas e dívidas. Cintilação de estrelas sombrias em inolvidável segunda-feira, dez de fevereiro de mil novecentos e setenta e cinco. A casa completamente deserta, trincheira sem defensores, isolada numa esquina vadia, longe dos gritos de crianças medrosas fugindo por seus corredores longos e escuros, pasto de tímidas assombrações; longe do gozo de seus homens e mulheres brincando de pecado e perigo nas dobras de um tempo sombrio. Só o cheiro de álcool e suor, ainda entranhado em seu ventre, denunciava extintas primaveras de prazeres e testemunhava em silêncio uma época em que a noite adormecia a raiva e o ressentimento represados durante o dia. Joaquim Palhares, 308, sobrado, Estácio. As incontáveis batalhas travadas na calçada, na escada, no porão, nos quartos, converteram-se no martelar de um bate-estacas, no movimento ritmado e impiedoso de operários e betoneiras, metamorfoseando o passado em escombros, decompondo, tijolo a tijolo, esse pequeno universo desprovido de tamanho. Os fornos crematórios do progresso apagarão vestígios de porres e danças no lugar sagrado da tribo. Ultraje. Heresia. O assoalho não beijará os passos de seus bêbados incorrigíveis. A alegria delirante e boêmia de sua malandragem cederá vez e lugar à pose elegante de uma desumanidade, a um mundo padronizado, obediente a códigos de funcionalidade e indiferença, dominado por zelosos e eficientes gerentes de imagens, simulações, conveniências, vento. A polícia poderá fechar o livro de ocorrências, liberta do constante vaivém a pedido da seleta vizinhança. O trezentos e oito riscado em cruz. O estigma dos condenados. A marca sinistra dos inimigos da fé. Resta a Santa Inquisição, os jagunços do Tesouro Nacional, os engenheiros da Construção Perfeita, todos caírem sobre sua carcaça e como gralhas devorarem a pequena margem de pânico e lucidez dentro dos seus múltiplos olhos atônitos. A demolição move-se com pés mercuriais. Um sobrevivente perambulava pelas maltratadas dependências do sobrado, levando um espelho quebrado para não esquecer o próprio rosto saturnino e guardar bem viva a expressão de mágoa da casa adormecida. A casa tão dentro, tão no interior de tudo, tão só. Morcegos, ratos, aranhas, escorpiões, baratas, descargas quebradas, torneiras enguiçadas, fechaduras defeituosas, vidas perdidas. A casa furiosa com o trágico destino, batendo portas e janelas, desafiando a eficácia de máquinas e dos especialistas em demolição, ameaçando despencar do seu instável equilíbrio a qualquer momento e vingar-se de sua condenação. Tão gelada quanto as cervejas que, em dias de gala, recriavam o milagre da multiplicação do pão e do vinho. Pintada de branco, realçava a sujeira a formar estranhos desenhos em sua pele acinzentada. Um branco cor de ausência. Um branco que esgotara toda a sua alvura ao doá-la, generoso e cúmplice, a todos os momentos de nossas vidas. A casa, agora, reduzida a completo desamparo, repelia qualquer tentativa de contato, tolhia a imaginação e se furtava a um entendimento. A magia da casa não ocultava, entretanto, sua natureza labiríntica, os meandros onde as perdas e os pesadelos armazenavam-se, emudecidos. Joaquim Palhares, 308, sobrado, Estácio. Estacionauta invade a contramão e tropeça em pedaços de conversas, fragmentos de beijos e carícias, migalhas de sonhos, misturados ao tinir de copos, ao chiar das panelas, ao escorrer de águas em tanques exaustos. Sente o ruflar de asas inamistosas sobre a cabeça anelante. Ameaça de represália. Estacionave incapaz de inaugurar a sua trajetória, presa ao chão da memória de maneira irremediável. Estacionave ancorada no porto intergalático da América: América dos molambos, América das trapaças, lúmpen-América. Porto aberto aos flibusteiros, cruéis aventureiros, caçadores de índios, capitães do mato, bandeirantes em busca de tesouros, bandidos de todas as latitudes. Porto aberto a todos ansiosos por explorar teus meninos, tuas mulheres, tuas jazidas, tuas safras, tuas matas. Todos no mesmo barco. A solidariedade dos oprimidos forma um cordão protetor ao redor de cada um. A casa – apenas refúgio e esconderijo. Joaquim Palhares, 308, sobrado, Estácio. O cupim corroendo o madeirame. O jogo do bicho sempre a renovar expectativas de soluções miraculosas. A saga coletiva. Carlinhos, malandro e miserável, roubando bicicletas. Isaura, trabalhando todas as possibilidades do corpo. Henrique, ao volante de caminhões de cimento, dirigindo como um possesso a fome da família. Neca, bancando polícia, impondo respeito com pernas de capoeira, dando uma de xerife nos botequins adjacentes. Rita, sósia mal acabada de Ícaro, cujo salto suicida deixou-a viva, porém incrustou ao seu corpo um andar torto como o de um anjo exilado, sob o peso eterno da morte da filha de seis meses na queda. Cristina, sempre se esgueirando furtiva meia hora após a saída do marido para ver se recuperava com o seu viço e juventude o salário que ele gastava com bebida. Leila, a tonta, a sem juízo, que, enfurecida pelo fato de o marido ter esgotado o seu corpo e procurado novos tesouros em outros braços, perseguia garotos bonitos às carreiras pela rua, de camisola e sem dentes. Betinho, sem tempo e sem condições para tornar-se homem. Manéu, que alugava cômodos de um imóvel que não lhe pertencia, enquanto aguardava a redentora proposta de alguma viúva rica. Getúlio, assassino de outro homem num caso equivocado de amor e traição e agora a beber arrependimento, olhando fixamente numa foto antiga o seu sorriso ladeado pelas faces felizes da mulher e do irmão. Mauro, que descera as escadas com o auxílio de todos os moradores, marejado de lágrimas e súplicas, a caminho do Hospital de Engenho de Dentro, onde a morte o esperava entre choques e terapias homicidas. Moisés, que morreu num grande porre, depois de armar o último balão apagado. Luis Carlos, cujas mãos desferiram seis facadas no padrasto e os pés fugiram para Santa Catarina, para o corpo morrer afogado aos vinte e quatro anos de idade. Tiana, fugitiva do São Carlos, incapaz de explicar a pressa e o isolamento. Negão, que encarava qualquer barulho, desacatava polícia e, vez ou outra, hospedava-se por conta do estado. Marquinhos, empurrando carrinho de rolemã nas feiras, lavando carros e fazendo ganhos para assistir a bangue-bangues nos poeiras. Todos, agora, espalhados pelos sete cantos da cidade, sobrevivem na periferia da Babilônia, em terras de assaltos diários, ruas de lama e esgoto, sem luz, sem conforto, sem saída. Gado levado para engorda. Os caros filhos da pátria, da terra gentil, da cidade maravilhosa, do eterno berço esplêndido. Os habitantes da res publica, perfilados no paredão cinza dos dias, prestes a sucumbir perante polícia, autoridades, governantes, doutores, líderes carismáticos, fiscais da agonia, mascates do sofrimento humano, formam alas avessas às carnavalescas. A casa guarda sua tragicidade em folhas negras, adormecidas no sótão. A casa contaminada. A casa condenada. A casa suspeita. A casa mal-assombrada. A casa apenas casa: lugar de comer e dormir, amar e sofrer. Pôsteres e retratos como medalhas disseminadas pelas paredes enrugadas e tristes, acumulando camadas de gerações como se fossem pinturas sobrepostas. Estacionauta num mar que não dá livre curso ao seu calado, nem suporta a tonelagem de glórias e infâmias. O velho encouraçado desmanchou-se com o calor, a pressão do progresso, a especulação imobiliária, desviou-se do caminho previsto e adotou a rota das grandes fugas. Sinal de alarme: rombo no casco, botes de emergência, grades cerradas, lençóis amarrados um a um, uma pistola sete meia cinco na cintura. A casa sangrando pelas frestas do telhado. A água lavando mansamente os palavrões e as inscrições apaixonadas espalhadas pelas linhas tortas do seu corpo descascado e pulsante. Henrique é morto. Leila sumiu. Getúlio foi morar em Anápolis. Isaura vive com um alto funcionário do Banco do Brasil e não quer mais saber de ninguém. Sobra apenas a interminável fila do banheiro, as brigas, o desencontro total de vozes, pessoas e sentimentos. Resta o olfato descobrindo carne assada, peixe com coco, galinha ao molho pardo ou feijoada, em dias de aniversário, de batizado, de casamento, de milhar na cabeça. Resta a festa diuturna das crianças, importunando os infelizes, desorientando as regras estabelecidas, inventando a esperança em cada gesto, a cada minuto. Resta a dor e o desemprego, a falta de frutas e verduras; a expressão de espanto dos filhos, perguntando, inconformados, por balas e doces. Resta o amor sem perguntas a instalar-se sobre si mesmo, sem precisar recorrer a explicações ou justificativas, pois amadurece subterraneamente e quando aflora vem, caudaloso e irrefreável, arrastar reservas e resistências, ligar destinos, abalar antigas paixões, inverter valores, descobrir o véu de automatismo sobre o cerne da existência – forte, denso, inexaurível. Estacionauta, o último sobrevivente. Na impossibilidade definitiva de sustar a demolição, levou a casa no interior dos olhos: sugou as vigas e os tijolos; absorveu os tacos e as telhas. Estacionauta através do espaço, guiado por espelhos mágicos e cometas suicidas. Estacionave a preencher a memória do estacionáufrago. Joaquim Palhares, 308, sobrado, Estácio. Velhice. Decadência. Aposentados jogando baralho, dama, xadrez. Peladas no meio da rua. Princípio do mundo. Pipa cortando macia o azul dos domingos. A novela das oito desunindo e domesticando a família. O pau comendo solto no final dos bailes. A casa. A presença da casa nas mangas da camisa. A casa. A linguagem das cartas na caligrafia da casa. A casa vazia. A vida extirpada violentamente da insegurança da casa. Vazia a caixa do coração. Covil. Pardieiro. A casa vazia e forte. A casa vazia e forte. A casa vazia e forte.
 

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