quinta-feira, 26 de maio de 2011

SUICÍDIOS EXEMPLARES



SUICÍDIOS EXEMPLARES, de Enrique Vila-Matas

É muito extensa a lista de autores que recorreram ao suicídio. Na literatura portuguesa, o gesto radical silenciou Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, entre outros. No Brasil, me recordo de Ana Cristina César e Torquato Neto. Em outras latitudes, foi o ponto final de Jack London, Virgínia Woolf,  Hemingway,  Stefan Zweig, Sylvia Plath,  Cesare Pavese, Hart Crane, Virginia Woolf,  Romain Gary, Ernest Hemingway, Jack London, Sylvia Plath,  Paul Celan, Serguei  Essenin, Vladimir Maiakóvski, Primo Levi, Paul Nizan, enfim, uma galeria impressionante de nomes ilustres. 

A morte, qualquer que seja a forma de sua presença, parece inscrita no próprio código da criação, talvez sirva mesmo para legitimar a arte como o movimento de fuga ao inexorável limite humano, uma desesperada escrita que tenta uma permanência negada pela dissolução promovida pelo tempo e suas duas sombras inseparáveis: a mudança e o esquecimento.

O suicídio é seguramente uma forma de grande complexidade. Uma afronta à onipotência da morte, um desafio à autonomia que ela revela ao exercer um domínio impiedoso  sobre nós. O gesto extremo redunda de uma escolha ou, paradoxalmente, da própria impossibilidade de caminhos. Podemos entender a referência artaudiana à morte de Van Gogh, “suicidado pela sociedade”.  Em qualquer caso, matar-se é manifestar o desejo de descontinuidade, um salto equivalente à geração da vida, ou seja, a anticriação, a radicalidade da criação como forma suprema da negatividade. Caminho de fuga que podemos trilhar de modo autônomo, como quem busca um beijo e um abraço, ou impelidos por forças superiores à nossa capacidade de resistência. De qualquer maneira, abreviamos a jornada rumo a um encontro obrigatório.

A morte só existe como linguagem. Acho que Heidegger disse isso ao escrever que “só os mortais podem ter a experiência da morte como morte”. Não me preocupo em buscar significado para algo que me assombra. Nem quero aqui aprofundar um pensamento que fere e sangra de tão incômodo. Permaneço no impasse apontado por Heidegger: “A relação essencial entre morte e linguagem surge como um relâmpago, mas permanece impensada”.

Para Vila-Matas os suicídios exemplares são aqueles impossíveis, indefinidamente adiados, como observou com precisão o escritor argentino Alan Pauls na apresentação do livro, para quem o autor de O mal de Montano é “um hábil fabulador de ‘pulsões negativas’ (deixar de escrever, desaparecer, não ser ninguém)” e a reflexão sobre a morte ao longo do texto não implica desistência, derrota, antes “é um princípio de potência: algo na vida range, se abre e começa a ser possível – algo desconhecido, que até então não tinha rosto nem forma, e que agora, de repente, parece exercer uma sedução irresistível – quando alguma das criaturas que povoam estas páginas se deixam possuir pela ideia de se matar”.

A ideia de suicídio é o centro irradiador das narrativas de Suicídios exemplares , de Enrique Vila-Matas, lançado 1991, na Espanha, e traduzido por Carla Branco em 2009 para a Cosac Naify.  A mesma editora já publicou no Brasil diversas obras do autor catalão: A viagem vertical (2004) – ganhador do prêmio Rómulo Gallegos -, Bartleby e companhia (2004), O mal de Montano (2005), Paris não tem fim (2007), Doutor Pasavento (2009) – ganhador dos prêmios da Real Academia Española (2006) e Mondello – Città di Palermo (2009) -,   e História abreviada da literatura portátil (2011). 

O próprio Vila-Matas ressaltou (em entrevista à revista Cult) a importância do livro para o desdobramento da sua narrativa: “É um Vila-Matas em estado puro, um livro respeitado até por meus inimigos. Além disso, é um claro precursor de Bartleby e companhia, já que narra histórias de pessoas que se retiram de uma atividade. Também precede Doutor Pasavento porque no conto “A arte de desaparecer” se fala, pela primeira vez em minha obra, sobre o tema de recusar-se a publicar, o medo de sofrer a exposição pública como se fosse uma ofensa; uma sensação de desnudar-se e de humilhar-se como se estivesse diante de uma comissão médica militar uniformizada”.

No preâmbulo do livro, “Viajar, perder países” (tomado de empréstimo a Fernando Pessoa), o ficcionista catalão apresenta imagens que servem como referência ao seu processo ficcional: o autor como vagabundo, a escrita como inscrição urbana (grafite), a viagem como metáfora textual e suas ramificações – mapas, caminhos, perdas e labirintos, a leitura como injeção subjetiva de imaginária viagem do leitor no trajeto sempre em fuga do texto.

Os dez contos que compõem o volume alimentam-se da exploração do terreno fronteiriço entre a vida e a morte, no limite nebuloso entre permanecer e abandonar, normalmente giram em torno do fracasso, da incapacidade, da irresolução. Percebo a força de uma narrativa do não em Vila Matas, desde o primeiro livro dele que li, Bartleby e companhia, onde, numa menção a Blanchot, o narrador diz,  quase no início da obra: “Apenas da pulsão negativa, apenas do labirinto do Não pode surgir a escrita por vir”.

“Morte por saudade”, o primeiro conto, começa com um olhar curioso da infância em busca da apreensão do mundo. Busca que não se completa, ou melhor, realiza-se como fuga ao inevitável sopro das contingências. O protagonista é um pintor incapaz de pintar. Apesar de jovem, de viver com uma bela mulher, de poder viajar para onde quiser, de amar as duas filhas, de ser dono de uma rede de tinturarias, de ter uma saúde de ferro, a sua vida é pura irrealização. Carrega na fase adulta o gesto de fuga da mendiga que o assustava na infância, por isso Horário Vega, seu melhor amigo, pode afirmar para ele: “Você foge da plenitude”. É por intermédio do amigo ainda que  se aproxima da ideia de suicídio, pois ouve o relato da morte do avô de Horácio: embora vitimado de paralisia, conseguiu desferir um tiro de escopeta na própria boca. Proximidade que se estreita com o suicídio do pai de Horácio, cuja família parece compor uma longa lista de suicidas.

O suicídio do protagonista não se cumpre, antes é um mergulho em um estado em que fronteiras temporais se apagam e a infância cruza os seus passos com o presente nas ruas de Lisboa. Ele parece usurpar ao amigo a vocação de suicida, como se a infância apontasse para uma incorporação da ideia de plenitude como um movimento cuja possibilidade só se dá fora dessa realidade. Sua irresolução, no entanto, o torna refém da saudade, o presente acontece em zona de refúgio, em rota de fuga. A morte pretérita torna real o imaginário do presente; atemporalizado, o presente propriamente entra em eclipse.

“Em busca de um parceiro eletrizante” conta a trajetória de um ator de carreira vitoriosa. Após conquistar a fama, o corpo sofre uma espécie de mutação, passa de uma “cômica e exagerada” magreza extrema à obesidade. O crescimento físico corresponde a um apagamento social: “Mas o infortúnio espreitava no ângulo mais iluminado de meu festivo jardim, e sem me dar conta, comecei a me abandonar”. A narrativa explora o despir-se de sonhos, construindo-se como uma narrativa de perda. Volta a Villa Nemo (óbvia referência a Jules Verne) para não encontrar o passado, não revivê-lo. Sem nostalgia ou piedade, com o auxílio de estricnina e muita ironia aguarda, sem ansiedade e sem ressentimento, o momento de reencontrar o falecido barão de Mulder a quem vendera a luxuosa propriedade, o parceiro eletrizante.

O suicídio como promessa eterna parece alimentar “Rosa Schwarzer volta à vida”. A morte por hesitação, decisão que não se cumpre, sempre adiada. Vigia do museu de Düsseldorf, Rosa Shwarzer parece atender ao convite oriundo do quadro de Klee, O príncipe negro, para ingressar no país dos suicidas. Defende-se da tentação, contemplando outro quadro. 

A criação tanto se aproxima quanto se afasta da morte, constituindo-se numa linha defensiva com a qual o indivíduo equilibra até onde é possível uma tensão cujo desfecho sabe muito bem qual será. 

A protagonista exercita a ideia do suicídio como uma forma de equilíbrio perigoso, risco completo, porém forte para atenuar o tédio e o cinza da existência, nítido na indagação: “Esta vida para quê?” Beber água sanitária, atirar-se pela janela, lançar-se à frente de um veículo, fazer um haraquiri com uma faca de cozinha, abrir o gás e imolar-se nas chamas, provocar a violência homicida do marido, nenhuma tentativa produz o efeito desejado.

A sétima e simbólica tentativa é um golpe de mestre do narrador. Rosa ingere o cianureto, fica bêbada ou sonha? Não pode resistir ao chamado do tambor dos suicidas. Ingressa na tela e é recebida triunfalmente pelo príncipe negro. Só que ela descobre, então, “que a irrealidade também é desagradável”, também apresenta coisas, criaturas e situações “estúpidas de propósito”, “vulgares”, “medíocres” como as da realidade. Suicida-se ao contrário, da morte para a vida. Atravessa o suicídio, como o narrador atravessa a morte. Do lado de lá do nada, do branco do papel, lá onde não existe vida, é de lá que vem a criação, as águas do inexistente irrigam a narrativa. 

 O professor Anatol, protagonista de “A arte de desaparecer”, em pleno dia da sua aposentadoria de uma longa e profícua carreira no magistério, confessa ter sempre vivido em surdina, na ponta dos pés, às voltas com uma incontrolável propensão à invisibilidade. Num exercício de autoanálise, afirma que “sempre tinha existido nele uma recusa total do sentimento de protagonismo”. Seu estranho trabalho consiste, por conseguinte, em ser artesão de perdas, num cultivo constante da arte de sombras.

Trabalho contínuo, obstinado, perfeccionista, a arte de desaparecer dissolve a radicalidade do suicídio ao longo de toda a vida. É a morte mínimalizada e fragmentada minuto a minuto, a morte ritualizada num processo criativo e sacrificial, verdadeiro rito com exigência de vítima, no caso, o próprio narrador. Tanto o autor quanto o narrador são perigosos homicidas; pensa-se a literatura como um espaço gerador de vidas duplas, múltiplas, construídas no imaginário, mas, na verdade, a arte instaura-se sobre a morte daqueles que a produzem, suga, esvazia uma dimensão para preencher com as ruínas de uma vida de carne e osso as formas abstratas organizadas pela linguagem.

Durante quarenta anos dedicados a tarefas didáticas, o escritor secreto produziu sete extensos romances sobre a tensa e explosiva linha situada entre o recolhimento e a exposição, exercitando a vida como malabarismo percorre a pé e a tinta uma linha bamba desconhecida por público e crítica, por amigos e pela família. Escrever é ser estrangeiro para produzir a escrita como linguagem familiar aos estranhos. O protagonista se faz passar por estrangeiro em sua terra natal, precisa negar a própria identidade para se aproximar do outro. O escritor queima o próprio rosto, exclui-se da urbe, abandona o país para poder encontrar o verdadeiro rosto, a cidade por onde se perde e o próprio país que carrega na língua e na memória.   

A modéstia do professor Anatol dissimula o cinismo que pavimenta o caminho da busca. Procura-se uma espécie de novo santo graal cujo valor é tão alto que o mundo parece se anular diante dele. A percepção da essencialidade da tarefa clandestina é lançada ao mundo sob a capa de estranheza, trabalho silencioso, gesto oculto, anonimato concebido apenas para esmagar a superficialidade da fama, do alarido e da notoriedade, transformando-os numa estéril dança no vazio. Há uma falsidade gritante no silenciamento e na fuga do escritor, cuja existência sob a pele de professor revela apenas desprezo por uma rotina desviante, essa anomalia que é o preço pago para poder realizar aquilo que é fundamental. O professor Anatol é apenas a cobertura do escritor Anatol. A existência subterrânea resguarda a essencialidade da escrita e protege o criador de quaisquer interferências. Sua natureza privada e intimista dá-lhe uma feição de “falsificada fofoca sobre mim mesmo”.

O professor sucumbe, no entanto, em sua última aula. Pela primeira vez na vida, sente-se bem ao exercer protagonismo. Embora meio constrangido, aceita o convite para escrever a introdução de um livro de fotografias sobre esporte. O texto cai nas mãos de um editor capaz de reconhecer nele qualidades de um grande autor desconhecido. Anatol, assediado pelo editor, não resiste por muito tempo. Confessa ter traduzido Infância em Berlim, de Walter Benjamin. 

A concessão de Anatol expõe a ambivalência de seus sentimentos: de um lado, um movimento sem ruído, secreto, o território inviolável de sua criação; de outro, o desejo de ser lido. Essa tensão mobiliza seus atos. Acaba cedendo e permite a publicação de seus sete extensos romances ambientados em seu país, a “maldita ilha de Umbertha”. Contudo, certo de que a obra amadurece melhor na clandestinidade, mantém-se fiel ao princípio da invisibilidade, abandona a terra natal.

Antes, em diálogo com o editor, o protagonista revela toda uma concepção sobre a narrativa:
“ –  Mas é que a mim, amigo Hvulac, sempre me horrorizou o sentimento de protagonismo. Sempre amei a discrição, o anonimato em tristeza, a glória sem fama, a grandeza sem brilho, a dignidade sem remuneração, o prestígio próprio. Desde menino o mundo da escrita me parecia precocemente apetecível e proibido, relacionado, em todo caso, com uma infração, com uma prática furtiva. E além disso, amigo Hvulac, nas coisas que escrevo suspeito uma operação de baixa luxúria, uma espécie interminável de falsificada de fofoca sobre mim mesmo. A quem poderia interessar algo semelhante?”

O risco de qualquer escritor é doar-se como leitura a olhares que desapropriam o texto de propriedades autorais para contaminá-los com a poeira e a respiração de outros caminhos, o escritor é um corpo de linguagem, constitui-se, portanto,  como uma vida em despojos a serem devassados por estranhos sem pudor ou clemência.  Seu suicídio, melhor ainda (ou pior), é metódico, apaixonado, obsessivo. A morte preparada durante todo o tempo como se o ritual que se encena promovesse o adiamento daquilo que ele anuncia. A literatura desaparece e permanece simultaneamente, assim como o autor. Ambos estão mortos, porém já não podem morrer. Morreram, mas mal acabaram de nascer. A arte, por ser inacabada, incapturável e algo por vir, não tem como morrer. Pode viver para sempre alimentando-se de suas próprias entranhas ou reinventar-se.

O conto funciona como um estudo preparatório para um texto de maior fôlego, o romance Doutor Pasavento.

A viagem narrativa de “As noites da íris negra” resulta num passeio por sepulturas. A ficção como fantasia sobre epitáfios, marcos de uma memória cuja falha é preenchida pela linguagem. A morte surge não individualmente, mas inscrita como seita, uma confraria de suicidas – a Sociedade de Simpatizantes da Noite da Íris Negra de Port Vent, da qual restam apenas os irmãos apóstatas, Catão e Uli, sem coragem para consumar o ato final. 

O que liga o protagonista ao círculo dos iniciados de Port Vent não é a preocupação em descobrir o jazigo do pai de Victoria, sua mulher. É algo maior, sem explicação e sem controle, algo que faz com que: “de uns tempos para cá, tudo que pareça abrigar a morte me seduza de maneira irremediável”. A morte sob a forma de uma canção hipnotizante, de um ritmo envolvente, de uma atração irresistível. 

A epígrafe de Sêneca – “Nada melhor a lei interna fez do que nos dar uma entrada para a vida e muitas saídas” –, retirada das Epístolas morais a Lucílio, serve como lema de um modelo de morte exemplar para os sócios da Íris Negra, conforme os termos de uma carta de um de seus membros que “desejava que seus íntimos acudíssemos a visitar sua casa e, falando toda a noite de filosofia, o acompanhássemos nas horas anteriores à desse gesto valente e final que desejava ser fiel à máxima de nossa Sociedade, ou seja, desaparecer digna e serenamente depois de uma grande festa do espírito e de uma vibrante homenagem à amizade e ao amor à filosofia, à maneira de Catão ou de um Sêneca, cujas mortes são, ainda em nossos dias, o mais perfeito exemplo e modelo do suicídio clássico e sereno, profundamente mediterrâneo...”. 

Entre tumbas, lápides, esculturas, num cenário de ruínas apropriado ao universo gótico, ultrarromântico, a morte surge clássica e serena, envolta em mistério e num ritmo narrativo próximo ao policial. Todavia não há sentimentalismo, excessos, expectativa angustiante. A indesejável senhora age como uma dama sedutora de um pequeno círculo de desencantados cortesãos. A morte como etiqueta e fuga ao tédio.

“A hora dos cansados” me parece destoar um pouco dos outros contos. O protagonista segue um velho de aspecto cadavérico e com uma maleta pesada. Por sua vez, o ancião passa a seguir um negro com jeito de boxeador decadente. O desconhecido faz anotações sobre o negro. Ao perceber o protagonista no seu encalço, o velho deixa de espionar a vítima escolhida. Por sua vez, quando o protagonista desiste de bisbilhotar vidas alheias, o negro o interpela. Sem explicações a oferecer, o anônimo protagonista vale-se do recurso de usar a desculpa de que observava pessoas para enriquecer os contos que escrevia. Essa explicação soa convincente. Enquanto os dois conversam, a catedral, onde o velho se refugiara, explode. Escrita e voyeurismo embaralham suas letras, mas o autor, ao escrever, ultrapassa os estreitos limites do registro visual.

“Uma invenção muito prática” trabalha a psicologia da morte a partir de um triângulo amoroso rompido pelo suicídio do homem e pela loucura de uma das mulheres, a protagonista, sob cuja ótica a narrativa é construída. Mesmo após quase cinquenta anos da ruptura da experiência triangular, a narradora alimenta-se de uma rede de ciúmes, mágoas e ressentimentos promovidos pela interferência da outra em seu destino. O veneno feminino incorpora a velhice para tornar mais ácidas as marcas da decomposição corporal lançadas como esgrima com a qual as duas buscam a vingança. O desejo de ver a rival suicidar-se manifesta a impotência em matá-la a não ser simbolicamente. A morte no espelho.

A personagem rompe com a discrição e a delicadeza de quem tentou passar pela vida com a leveza de bailarina, confessa que “nunca senti mais do que indiferença absoluta pelo mundo, achando-o sempre cinza e me limitando a passar por ele na ponta dos pés e escondendo, em lugar de exibir, meu profundo mal-estar e meu tédio”.

A tentativa de suicídio é esvaziada, desiste de pular do sexto andar e se atira do primeiro, fraturando alguns ossos. Salto da impotência, voo sem asas, encurralada entre uma vida insuportável e o obscuro da morte. O absurdo produz o cômico, a fratura alcança o sentido da existência, expõe a angústia nas fronteiras do risível.
A loucura maior é simular loucura. Algo desnecessário, pois ser humano é ser, sob um certo ângulo, insano. O artifício de incluir-se em um manicômio sob o pretexto de reencontrar sua melhor amiga, Rita Rovira, é um gesto suicida, um exílio deliberado da vida.
A narradora relata que Rita Rovira recebia cartas de um pianista húngaro nas quais lia, na realidade, aquilo que ela mesma pensava. A amiga, imaginária ou não, circulava no plano da fantasia, o que ela imaginava era a escrita da protagonista, a caligrafia da morte: “Morrer é uma arte, como tudo. Eu o faço excepcionalmente bem”.
Com a amiga, a narradora fez a sua grande descoberta: o mistério da loucura anula-se com o mistério da escritura. Sua vida só se justificava porque escrevia cartas com as quais evitava o desespero, a oclusão absoluta, o eclipse definitivo. A exemplo do pianista de Rita, a narradora também escreve a uma improvável rival, denominada Susana, a rouba-maridos, a quem incentiva a busca do suicídio como saída.
“Pedem que eu diga quem eu sou” é um relato sobre a  pintura de Panizo del Valle, considerado o último grande pintor realista. O narrador descreve-se como um obscuro marinheiro de segunda classe, durante a juventude, vivida entre os portos que se estendem de Bikanir a Moçambique.  No entanto, na costa sul da península de Babàkua foi capitão de um baleeiro e gozou de certo prestígio.
Em 1917, a bordo do navio Bel-Ami, conheceu o pintor famoso. O marujo catalão, que se declara autodidata,  critica a pintura de Panizo, considerada uma falsificação grosseira da realidade. Disputa com o pintor o conhecimento sobre a real, apresentando-se como alguém que representa a verdade. A obra do pintor seria falsa porque o artista não conhece a verdadeira natureza dos nativos, vistos pelo narrador como criaturas dotadas de qualidades diabólicas, pois são invejosos, falsos, difamadores, mentirosos, mesquinhos, desprezíveis, malignos e terríveis envenenadores das almas cândidas, além de lerem ao revés. Diabólico, na verdade, é o diálogo conduzido pelo mefistofélico marinheiro.
Curiosamente as qualidades atribuídas aos babakuanos parecem ser as do narrador. Há uma disputa envenenada no diálogo entre ambos o marinheiro e o pintor, aquele sempre agressivo e ressentido. A certa altura percebe-se nele um crítico de arte capaz de formular uma autêntica teoria plástica: “a pintura não é nada se não for perigosa”.
Após suportar as observações inquisitivas e rancorosas do narrador, Panizo del Valle, ao ler o nome do marujo ao revés, percebe a natureza mortal do encontro: Satam Alive joga com a mistura de línguas e contextos distintos; O “e” de Ernesto junta-se a Vila Matas ao contrário, surge assim o diabo-autor-narrador no meio da história como invocação e provocação ao deslimite. O artista perde-se na neblina, a realidade entra em eclipse, a representação mergulha no vazio.
Esse conto me faz lembrar o golpe mortal sofrido por Frenhofer, o malogrado pintor de A obra prima ignorada, de Balzac. Ainda que inseridos em contextos diferentes, ambos, ao perceberem a imensa lacuna entre as suas telas e a ideia de reconstrução pictórica da realidade, desaparecem definitivamente.
Ana María, a narradora, é uma professora entediada que mora com a avó em Zaragoza e adora inventar histórias. Conta para a avó o encontro com Fernando, amigo sobre quem tinha grande ascendência, com Beatriz, por quem o amigo curtia uma intensa paixão não correspondida, e com Idir, o namorado saráui de Beatriz. Esse desencontro é o núcleo do conto “Os amores que duram por toda a vida”. 
A noite em que os quatro passam juntos termina em tragédia. Fernando desfecha um tiro no próprio corpo e morre, deixando uma carta em que transfere a causa da morte ao colonialismo espanhol, embora o motivo mais provável fosse a irrealização amorosa. Sua morte, promovida por uma expectativa que não se cumpre e em relação antitética com o título, revela ainda a paixão oculta de Ana María por ele.
“O colecionador de tempestades” é uma narrativa em primeira pessoa e ambientada na cidade de Bérgamo, na Itália. Gira em torno de uma invenção de Attilio Bertarelli, conde de Valtellina, referido pela narradora apenas como Mestre, em cujo palácio havia uma cripta que abrigava os restos mortais de sua amada  Vizen.
O mestre constrói uma parafernália que parece sair de uma mescla das páginas de Jules Verne com os filmes de ficção científica da década de cinquenta.  A engenhoca, uma máquina criadora de tempestades, revela-se um traste inútil. O conde de Valtellina morre vitimado por um irônico e fulminante ataque do coração. A pretensão do nobre em construir a própria morte é quebrada pelos limites infames do corpo. A morte sem o caráter sublime, sem nobreza. De nada valem a astúcia, as ações e o conhecimento, o acaso demole o engenho humano e o ridiculariza. A morte quebra a espetacularização, esvazia o palco e se apresenta quando a plateia é apenas o vazio. Sobra apenas a notícia sob a forma de sarcasmo e zombaria: “Homem morre quando se preparava para o suicídio”.
O suicídio revela-se uma travessia roseana eternamente adiada. Observe-se a radical diferença entre “A terceira margem”, de Guimarães Rosa,  e o conto "Rosa Schwarzer volta à vida", de Vila-Matas. O primeiro,  fabulação pura, avança além dos limites, lançando o texto no terreno do indefinível; no conto de Vila Matas, a personagem recua para o modo seguro da existência.
A obra de Vila Matas, ao navegar nas águas da narrativa contemporânea, de Borges a Bolaño, guarda a propriedade do ensaismo no interior do texto ficcional, mistura realidade e ficção, mobiliza uma biblioteca viva ao valorizar a dimensão intertextual, pulsa por vezes com a tensão da história policial, desarma o tom grave e solene com o uso do modo irônico e do cômico. Haverá um enriquecimento na injeção do sangue do ensaismo na ficção literária? O que se ganha e o que se perde? Acredito na validade de qualquer recurso desde que se mantenha em alto grau a poiesis, a invenção, o próprio da arte, ou seja, incorporar a pulsação do ensaio enriquece uma obra desde que não promova o seu enrijecimento, a montagem de um molde narrativo a ser sucessivamente preenchido por novas camadas de linguagem. Esse risco felizmente não ameaça Enrique Vila-Matas, um especialista em driblar com a linguagem os acenos da morte.

 Vamos ver o que Dublinesca, último romance do autor lançado no Brasil, nos reserva.


Autor: Enrique Vila-Matas         


Tradução: Carla Branco


Texto de orelha: Alan Pauls


Preço: R$ 49,00

Um comentário:

  1. Na verdade, Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois. Sobre o suicídio, são apenas especulações.
    Belo texto, Parabéns.

    ResponderExcluir